“Sonho que se sonha só é só um sonho, mas sonho que se sonha junto é realidade”.
Raul Seixas
Sou missionária na Amazônia há 18 anos e de lá pra cá muitos sonhos se tornaram realidade. Lembro-me muito bem que por mais de 3 anos, todos os dias, de manhã bem cedo, eu rezava, ou melhor, lia na frente do Santíssimo o mesmo sonho, ou pedido que eu tinha colocado por escrito numa carta. Era um texto comprido que havia enviado também às minhas superioras. O que eu sonhava? Ser uma presença no meio dos povos indígenas na defesa da vida, da cultura, do território e dos seus direitos. De fato, o tempo que morei em Maués, mais ou menos 4 anos, foram o inicio e a causa dessa paixão. Quão importante foi o testemunho de algumas nossas irmãs que amavam e lutavam pela mesma causa. A vida de Irmã Veronica Kumagay foi uma doação total ao povo Sateré Maué. Uma grande missionária, uma mulher forte e determinada, herança de sua descendência japonesa que com seu sorriso cativava a todos.
Deus sonhava junto comigo e me surpreendeu ao colocar no meu caminho uma comunidade indígena urbana quando conheci a Pastoral Indígena da Arquidiocese de Manaus. Comecei a visitar esta comunidade que acolhia 9 povos de diferentes culturas e línguas e depois a acompanhá-la semanalmente. Com pe. Roberto visitávamos as famílias, atendíamos às suas necessidades mais básicas, dávamos apoio quando era necessário denunciar algo ao MPF e ajudávamos no atendimento básico de saúde com transporte, etc.
De fato, a localização da comunidade era numa das zonas vermelhas de Manaus, lugar de tráfico de entorpecentes e muita violência. Um momento marcante nessa comunidade foi a realização da novena de Natal e a celebração do Natal. No meio de barracas cobertas de lonas o menino Deus armou sua tenda. A imagem do menino Jesus passou pelas mãos de todos e foi acolhido com cantos e danças, comidas e bebidas tradicionais. Sim, aquela comunidade multiétnica “Sol Nascente” se tornava um sinal de esperança, uma luz que ilumina a escuridão.
Graças à Pastoral Indígena tive a oportunidade de conhecer mais de perto o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), de participar das Assembleias anuais e adentrar sempre mais no carisma e missão da instituição. O comprometimento com a causa indígena pelos leigos e leigas, casais, religiosos e religiosas é algo que fascina porque é a maneira de trabalhar de Jesus: amar e servir. Defender a causa indígena nesse tempo histórico e na atual conjuntura política brasileira é viver o Evangelho de Jesus. Nesses 50 anos de CIMI (1972-2022) o céu brilha ainda com mais claridade pelo testemunho de tantos companheiros e tantas companheiras que, como profetas, não tiveram medo de doar a própria vida. Foi assim que em fevereiro de 2020, após dois anos de preparação com o estudo da antropologia, dos direitos indígenas, estatuto interno entre outros, fui referendada como missionária do CIMI. Mais um sonho que se tornava realidade!
Desde abril de 2018 como Congregação iniciamos uma presença na Diocese do Alto Solimões, mais exatamente na comunidade indígena Kokama em Santa Rita do Weil que pertence ao município de São Paulo de Olivença. O distrito de Santa Rita, pelo último censo do IBGE, conta com uma população de quase 13 mil habitantes entre ribeirinhos, povo indígena Kokama e povo indígena Ticuna. Os Ticuna configuram o mais numeroso povo indígena na Amazônia brasileira. Com uma história marcada pela entrada violenta de seringueiros, pescadores e madeireiros na região do rio Solimões, foi somente nos anos 90 que os Ticuna lograram o reconhecimento oficial da maioria de suas terras.
A pedido do Bispo, além de atender as comunidades católicas da Paróquia, colaboramos com a formação na paróquia de Belém do Solimões, a única, em toda a Diocese, integralmente Ticuna que conta com o primeiro Diácono permanente local. E para continuar sonhando, em janeiro desse ano tive a ocasião de participar da Assembleia de Pastoral Ticuna transfronteiriça. Na verdade, os Ticuna estão presentes na tríplice fronteira Brasil, Peru, Colômbia.
A pastoral transfronteiriça tem sido um empenho na Diocese do Alto Solimões. A paróquia de Belém do Solimões, que acompanha o povo ticuna, vem dando passos para tornar realidade uma Igreja intercultural. De 4 a 8 de janeiro de 2022, 204 ticunas de 27 comunidades, que fazem parte do Vicariato Apostólico de Leticia (Colômbia) e da Diocese do Alto Solimões, se reuniram para participar do 2º Encontro Geral da Pastoral Ticuna, coordenado pelos Frades Menores Capuchinhos, as Missionárias da Imaculada e os Missionários de Guadalupe.
O encontro aconteceu na paróquia São Francisco de Assis, comunidade de Belém do Solimões, dentro da Terra Indígena EWARE. Dele participaram ministros da Palavra, catequistas, agentes do dízimo, jovens, coordenadores, missionários, caciques, tanto homens quanto mulheres.
Ao longo de 5 dias vivemos momentos ricos de partilhas, escuta dos desafios de cada comunidade, trabalhos em grupo e formações em torno de 4 pilares: Palavra, Pão, Caridade e Ação Missionária. Durante todo o encontro foi valorizada a língua e a cultura ticuna, com instrumentos musicais indígenas, celebrações, terço e louvores todo dia. O encontro também refletiu sobre o Sínodo 2021-2023, que tem como tema “Por uma Igreja Sinodal: Comunhão, Participação e Missão”, sendo encaminhadas todas as reflexões feitas para os bispos da Diocese do Alto Solimões, Dom Adolfo Zon, do Vicariato Apostólico de Leticia, Dom José de Jesús Quintero Díaz e ao Papa Francisco.
Ao final do encontro, as comunidades presentes assumiram alguns compromissos para este 2022, entre os quais: celebrar todo Domingo de forma inculturada, fazer catequese e rezar o terço toda semana, cuidar melhor da natureza (ecologia), cuidar dos jovens formando grupos e lutando juntos contra o alcoolismo, continuar a preparar e enviar mais missionários(as) ticuna para ajudar as comunidades e paróquias mais enfraquecidas, rezar mais pelas vocações e organizar melhor a pastoral vocacional ticuna.
Buscando uma melhor articulação e o fortalecimento como povo ticuna católico em nível diocesano e transfronteiriço, foi planejado e aprovado um calendário pastoral para 2022 onde serão realizadas formações bíblicas para os Ministérios e Sacramentos como também encontros em prol da ecologia, da cultura e da luta contra os problemas juvenis (o alcoolismo, a violência, o suicídio…), educando para a feliz sobriedade.
E agora nos resta continuar sonhando com e como o Papa Francisco que na Encíclica “Querida Amazônia” assim escreve:
“Sonho com uma Amazônia que lute pelos direitos dos mais pobres, dos povos nativos, dos últimos, de modo que a sua voz seja ouvida e sua dignidade promovida.
Sonho com uma Amazônia que preserve a riqueza cultural que a caracteriza e na qual brilha de maneira tão variada a beleza humana.
Sonho com uma Amazônia que guarde zelosamente a sedutora beleza natural que a adorna, a vida transbordante que enche os seus rios e as suas florestas.
Sonho com comunidades cristãs capazes de se devotar e encarnar de tal modo na Amazônia, que deem à Igreja rostos novos com traços amazônicos”.
Ir. Dora Scorpioni – Provícia Brasil Norte